08 janeiro, 2009

Reminder

Hoje decidi escrever algo. Não sei se é por causa da minha doença ou algo mais, mas resolvi que não gostaria de ser esquecido. Quero deixar uma história, algo meu. Normalmente dizem que uma pessoa atinge a imortalidade ao fazer algo notável, memorável. Essa é minha única tentativa, com lápis em punho e papel branco tento deixar alguma marca nessa minha história.

Admito que vivi mais do que eu e outros esperavam. Minha vida não teve altos e baixos, não teve grande história, mas posso citar algumas passagens que me deixaram com o coração na boca. 77 anos, quem acreditaria nessa idade para alguém que viveu na promiscuidade?

Já li muito na minha vida para dizer que a figura do pai geralmente é muito importante para esse tipo de história. Vou lhe falar sobre o meu, que fez um papel grande, mas não importante. Autoritário e ranzinza, brincalhão, quando estava sóbrio. Bêbado era rude e violento, me batia e violentava a minha mãe, porém, ela sempre dizia: “Não vou deixá-lo meu filho, a gente não escolhe quem ama.” Agente não escolhe quem ama... Pura besteira, eu acreditava.

Saí de casa aos 17 e um ano depois ele morreu. Não fui ao enterro. Mas voltando um pouco no tempo, vamos falar da minha promiscuidade. De meus vícios, quatro no total, mulheres, bebida, cigarro e ópio. Em que lugar eu vivo? Cabe à você julgar, não vou descrever lugares nem citar nomes, acho que assim a imaginação corre melhor. Comecei a beber com 14 anos, cigarro, com 16, ópio, 17. Sempre andei nos grupinhos dos descolados, dos caras legais, mas o que não dizem é que são os caras legais que fazem as piores coisas, e eles me levaram junto.

Acabara de sair de casa, estava me sentindo adulto, trabalhando em banco, morando sozinho. Nessa época me tornei um galanteador, o Casanova do meu grupo. Saia cada noite com uma mulher diferente, às vezes duas, as levava para a cama e dispensava depois. Chamavam-me de coração de pedra, gelado. Não ligava para ninguém, e assim que eu consegui subir na vida, não ligando e passando por cima de outros para conquistar meu dinheiro e prestígio.

Com 30 anos eu tinha tudo o que queria, casa, carro, dinheiro, mulheres. Meu dom de manipulação e sangue frio me deram muitos frutos. Mas com essa idade não havia aprendido nada, ainda era imaturo, a mesma mentalidade daquele garoto 13 anos atrás. Até que conheci Ela. A mulher mais apaixonantemente perversa que eu já havia visto. Eu posso até não ter créditos para dizer isso, mas ela era má. Eu me apaixonei por ela.

Soube conhecer, conquistar e amar. Tornei-me seu amante, e logo, seu marido. Sim, nos casamos. Tudo o que ela queria. Soube que ela teve amantes, não ligava, nada me interessava mais do que estar perto dela, aliás, também tinha minha cota. Até que uma situação específica me deu a sensação de um mau presságio. Em uma das minhas rotineiras idas à padaria de manhã, bem de manhãzinha, me deparo com um beco escuro e gritos vindos de lá. Prossigo com cautela para averiguar o que acontece, ando na sombra, quase invisível. Lá está uma mulher, semi despida, roupas rasgadas, lutando por liberdade nos braços de um homem que a dominava com uma faca. Lágrimas escorriam por aquele rosto, e lia bem a expressão em seus olhos: Pânico. Nojo. Total e completo nojo me toma e me faz vomitar. Vomito no chão, minhas pernas tremem e volto ao meu caminho em direção à padaria amaldiçoando a minha falta de coragem.

Noites e noites passei imaginando como seria se eu tivesse apartado o estupro, se eu tivesse gritado, feito algo. Sufocava-me em meu travesseiro, recusava carícias de minha mulher e minhas amantes. Estressava-me cada vez que via a conta do cartão de crédito, enlouquecia cada vez que via uma faca. Estava enlouquecendo.

Algo me trouxe a sanidade, temporária ao menos. Uma noite, casa vazia, um copo de conhaque e uma dose de arsênico. O plano era perfeito, uma morte rápida. Eu não agüentava mais a dor na consciência. Prestes a tomar o meu gole fatal o telefone toca, é o chefe de polícia. Minha esposa havia morrido.Pela primeira vez em anos chorei. Chorei até não poder mais, até não agüentar a mim mesmo. Joguei o copo contra a parede e desmaiei de sono por sobre a mesa, caçaria o desgraçado do amante que a espancara até a morte, o procuraria até o inferno.

Os próximos meses foram pura fúria. Contratei os melhores investigadores particulares, comprei as melhores pistolas de uso pessoal e principalmente, comprei um soco inglês que jurei que só tiraria da mão quando estivesse coberto por sangue, pelo sangue daquele que arrancou meu coração do peito.

Existem pessoas que não nascem com certos instintos. E certamente eu não havia nascido com homicídio em minhas veias, e só fui descobrir isso quando finalmente tirei o soco inglês de minhas mãos, cheio de sangue. Via o homem que odiava deitado no chão, à minha frente. Encoberto por seu próprio sangue, o homem respirava com dificuldade, quase se afogando em seus próprios fluidos. Minha arma estava apontada para sua cabeça, mas tudo o que eu podia ver era a expressão de pânico em seu rosto, as lágrimas de seus olhos azuis. Minhas pernas tremeram. Lembrei-me daquela mulher. Deixei a casa do homem e fui me embriagar em casa.

Há quem possa dizer que fui covarde por duas vezes. Na verdade não. Fui humano na primeira, deixei-me levar pelas emoções, permiti que o medo prevalecesse ao instinto. Na segunda não sei o que foi. Covardia não foi, humanidade também não pois pena foi uma coisa que não senti na frente dele. Posso ter sido covarde, não importa. Mas ainda me pergunto. E se eu tivesse ajudado a mulher do beco?

Gabriel Vitor Tortejada