29 junho, 2010

Da idealização

Ele acorda de pulo em uma cela de prisão. Não lembrava quem era, de onde vinha ou o que fazia lá. Só tinha um nome na cabeça: Mary Hegel. Cada vez que repetia aquele nome, sentia-se quente, como se algum sentimento existisse dentro dele por alguém que não conhecia. Ou pelo menos não lembrava de tê-la conhecido. Gritou contra as grades, gritou para as paredes, pois não havia ninguém no lugar. A delegacia estava completamente vazia. Algo estranho estava no ar.
          Bateu inúmeras vezes no portão até descobrir que estava aberto, andou sorrateiramente esperando ser abordado a qualquer momento. Nada aconteceu. Na recepção, nenhuma alma viva, apenas uma televisão transmitindo um filme em preto-e-branco. Ponderou que tipo de canal colocaria isso no ar de tarde, e sentiu pela primeira vez o frio na espinha da situação desconhecida que estava enfrentando. Como ninguém o impedia, simplesmente saiu. Para a liberdade, ou não.  
          A rua estava vazia. Semáforos trabalhavam para carros invisíveis em tráfego, os únicos carros que estavam na rua, permaneciam estacionados e nenhuma alma viva para tirá-los do repouso. A viatura estava com a porta aberta e a chave no contato. A adrenalina subiu quando entrou no veículo, estava assinando seu retorno à cela, apesar de não haver nenhum policial, ou melhor, nenhuma pessoa à vista. Abriu o porta-luvas por instinto, encontrou uma pistola, empunhou-a e de repente flashes de memória acertaram-no como um caminhão.
            Sabia usar aquele objeto. Conhecia o peso, as medidas, sentia-se confortável com ele em sua mão. Considerou ser policial, acordar numa delegacia, saber manusear uma arma policial, mas considerou também o oposto, seja lá qual for, o que desejava em suas entranhas para não ser. Não houve necessidade de arrumar os espelhos ou o banco, estava tudo na perfeita posição para ele. Decidiu dirigir, sem destino, sem conhecer por onde andava, simplesmente dirigir à esmo. Guiou instintivamente, como se tivesse feito isso por toda a vida.
            Perdeu sua percepção de tempo, e para ajudar, seu relógio estava parado. Pela primeira vez reparou a si mesmo nos espelhos. Apresentou-se à sua face enquanto mais um turbilhão de memórias chegavam ao seu ser. Infância, mãe, pai, amigos. O passado inteiro encontrou-se com ele sem ao menos lhe dizer um nome. Ninguém nas ruas, já dirigia há horas - sem perceber - e de súbito decidiu parar.
            Estava no subúrbio de frente para uma casa comum de dois andares, mas o comum não o convenceu, teve que entrar. A porta rangeu alto em sua entrada, fotos estavam espalhadas por todo o saguão, fotos de família, fotos de uma mulher: Mary Hegel. A cada vislumbrada de seus lindos olhos verdes e cabelos cereja seu coração se enchia, suas pernas tremiam e sabia que a amava, só não sabia como e nem quem ela era.
            Decidiu ir ao quarto. O aroma da mulher estava em todos os lugares, ele sentia a sua presença lá. A via sentando-se em frente ao espelho, se trocando, dormindo. Mas havia algo de errado. Suas coisas estavam encaixotadas, tinha algo errado. Ela estava se mudando? O pior? Novamente suas memórias entraram em colapso e flashbacks passaram por sua cabeça. Corria abraçado com ela, ele estava mancando, tinha uma arma na mão. O dois estavam fugindo de alguém e, em um pulo temporal, vê o corpo dela estendido no asfalto, sangue para todos os lados, um pequeno orifício na lateral da testa. Ela estava morta.
            Por um segundo se ajoelha no chão e começa a chorar. Fecha os olhos com muita força e soca o chão com a raiva imensa que sentia, mas o chão mudou de textura. Era grama. Abriu os olhos para ver uma imensa lápide com os seguintes dizeres: Mary Hegel - filha e esposa. De onde vinha todo aquele amor? Será que ele era o marido de Mary? O que acontecera de fato com ela? Então uma voz vindo de trás responde essas perguntas:
            - O interessante é que você realmente não entendeu nada do que se passou nesse tempo que você vagou na cidade.
            - Quem é você? Em que lhe interessa a minha vida?
            - Ora, me interessa, e muito. O que me surpreende é você não ter percebido que morreu. E não ter percebido também que a causa da morte dela foi você. O anjo da morte estava lá para levar os dois, e esse anjo fui eu.
            As memórias ficaram claras finalmente, o homem não amava Mary, mas foi pago para matá-la. Ele a seqüestrou, mas ela estava sendo vigiada e aconteceu uma perseguição policial contra ele. Matou a mulher sem piscar, pouco antes de ser executado pela polícia.
            - Você a matou por dinheiro, assim como outros antes dela. E é por isso que você está aqui, esse é seu paraíso, sem pessoas, sem nada. E o único amor que você jura ter foi implantado para que seu sofrimento nesse lugar seja ainda maior. Você nunca a amou. Simplesmente ama agora porque gosto de sua agonia. Aproveite a eternidade.

Gabriel Vitor Tortejada


17 junho, 2010

Onde chegamos?

Não há limites para a idiotice. E mesmo que houvesse, duvido que alguém um dia preveria por ser um limite extremamente grande. Eis que apresento a personagem: Juliana, 27 anos e muita vida pela frente. Suas burradas nunca foram tão grandes quanto a da noite passada. Apresentava-se ao trabalho cedo, fazia todas as tarefas com louvor e empenho, nunca existiu nenhum obstáculo que pudesse impedi-la de realizar seu trabalho. Mesmo com dificuldades apresentava-se uma excelente funcionária e nunca falhava.

Estava no escritório há 6 meses. Impressionava a todos com sua capacidade de administradora e não era raro ser chamada para reuniões sociais pelos funcionários da empresa, esse foi o problema. Sempre extrovertida, fazia amigos com facilidade e acabou por se aproximar de seu chefe, Anselmo, em um relacionamento cordial. Até o dia em que um happy hour foi marcado. Estavam todos num bar, dividindo drinks e conversando animadamente. Enquanto o nível etílico se elevava, a conversa se tornava a cada passo mais pessoal.

Anselmo e Juliana trocaram olhares e, antes que percebessem, estavam aos beijos em um canto obscuro próximo da mesa de bilhar. Sorte dos dois que a maioria do pessoal da empresa já tinha se retirado, já que o happy hour acabou se prolongando para o início de uma madrugada. Infelizmente para a mulher, tinha esquecido da posição hierárquica que se mantinha na empresa e como sua posição naquela sala confortável estava em risco. Anselmo também respondia a alguém. Todos têm um chefe de alguma maneira. E a partir daquele momento os dois estavam na berlinda quanto ao emprego.

O chefe, casado. A funcionária, há uma assinatura do divórcio. As coisas ficaram mais claras quando Juliana voltou para casa para ter uma conversa com sua mãe, que estava sóbria. A expressão de espanto da mulher era legível até para um cego. Não havia palavras o suficiente para descrever  a ação impensada da filha. E também ações para que fosse resolvida a questão. Ela tinha violado uma regra que, de tão explícita, ninguém fala sobre: Não se relacionar afetivamente com colegas de trabalho, principalmente o seu chefe.
 
Como chegamos ao presente, não há solução para a questão levantada. Não há acontecimentos que digam o que aconteceu com Juliana, mas uma frase que sua mãe falou é uma ótima conclusão para o caso descrito aqui:

- É mais fácil um camelo passar por um buraco de agulha, do que um imbecil entrar no reino dos céus.

Gabriel Vitor Tortejada

13 junho, 2010

Negros da Terra

No dia de ontem passamos por uma das piores tempestades da viagem. O percurso nem é tão longo ou difícil, mas parece que os olhos de Deus estão sobre nós em nossa empreitada. Não entendo como pode Ele estar bravo conosco apesar de suas sagradas escrituras nos dizerem que podemos tomá-los como nossos escravos. Não me orgulho de nossa crueldade, mas são filhos de Cam, filhos de Canaã, são escravos destinados por Noé, é o que está em suas escrituras. Ou pelo menos o que nosso padre nos diz. Senhor, desculpe-me por não ler teus escritos, mas tenho que trabalhar, dependo do atlântico, dependo dos pretos, dependo de nossa crueldade para alimentar minha prole lá de volta na mãe luzitana.

A tempestade foi cruel, quase viramos e alguns homens estão morrendo do mal da Angola. Viemos de um porto diferente, não entendo como nossa tripulação foi afetada, mas eu ainda não adquiri nenhum do sintomas e temo pela minha vida. Estamos há 30 dias no mar nada de costa, mas vi aves voando ao longe e presumo que já estamos perto. Espero que não tenhamos que jogar a mercadoria no mar como da última vez. Apesar do dinheiro do seguro, detesto ver as expressões de desespero daqueles homens que sequer entendem o que está acontecendo, mas, quem sou eu para me levantar contra isso? Sou apenas um mero marinheiro que limpa o chão do barco, nada mais.

Seguimos em direção de Noronha, mas vimos franceses seguindo em uma direção diferente. Parece um navio de mercadorias. De acordo com o capitão eles estão indo para algum lugar perto da capitania de São Vicente, mas ouvi rumores que eles aportam em Ubatuba e negociam com os índios contrários à nossa coroa. Não sei se piratas, mas com certeza são perigosos.

Rezo pela alma dos pretos no nosso navio, pois ao contrário de nossa igreja, não acho que são impuros ou infiéis. Os índios canibais é que são, eles são apenas desenformados e não há como lhes mostrar o nosso Deus se não conhecem a nossa língua. De qualquer forma torno a falar que rezo pela alma deles, que com certeza as têm, pois sei que na hora da morte irei para um lugar muito pior do que eles irão.


Gabriel Vitor Tortejada