06 outubro, 2010

As viagens dos sem mundo

Bom, faz um tempinho que eu não posto nem escrevo algo novo, então vou postar uma coisa que já estou escrevendo há um tempo:

Prólogo


Aos poucos o carro funerário se afastava de onde Gabriel estava. Aquele havia sido um dia ruim, possivelmente o pior. Uma mulher em um terno feminino azul marinho, de segunda mão, segurava sua mão com profissionalismo. Ela já havia feito aquilo várias vezes antes. O coração do garoto pulava no peito enquanto seu cérebro ainda não tinha digerido tudo o que acontecera. Era inaceitável, imponderável. Ele ainda não chorara. Talvez porque ainda não sentira sua falta. Às vezes demora um pouco para que as pessoas realmente sintam falta de alguém que perderam. Esse era o caso dele.
            Aos 11 anos ele já era muito maduro para a sua idade. Já se acostumara com o fato da morte desde os nove. Sabia que sua mãe não duraria muito e deveria estar preparado para aquilo. Chorara na noite do diagnóstico e prometeu a si mesmo que não choraria nunca mais, que provaria à sua mãe que era homem, que era o homem que ela deixaria no mundo para cuidar de si mesmo. Uma pessoa que ela poderia deixar sem peso no coração. Apesar de tentar se preparar, ninguém se prepara para um momento desses. É possível dizer que eram muitas informações na cabeça dele, e para se acostumar levaria um tempo.
            A mulher do serviço social intimou-o para entrar e pegar o que pudesse carregar da casa que mais tarde alguém iria lá buscar o restante das coisas importantes para ele. Dirigir-se-iam naquela noite à casa da tia dele – Uma mulher de meia-idade, beata, viúva e caridosa – que o esperava ansiosamente já que tomaria conta dos bens preciosos que ele herdara.
            A porta rangeu como sempre. Antigamente era um rangido amigável, quase que um bem-vindo ao lar, mas especificamente naquela ocasião incomodou Gabriel um pouco. Aquele ambiente onde acabara de acontecer um velório o incomodava muito. Apesar de todos os sentidos dizerem-lhe o contrário, continuou andando com esmero pelo piso de taco brilhante da casa até chegar ao pé da escada. Sabia que aquela seria a última das subidas para o segundo andar. E não seria com a felicidade usual, com os semi-pulinhos de alegria e de mãos dadas com a mulher que mais amava em todo o mundo.
            O quarto dele pouco importava. Não se preocupou ao menos em abrir a porta e dar uma última olhada. Dirigiu-se diretamente ao quarto da mãe – lá embaixo a mulher impaciente apressava-o com alguns fonemas animalescos. Várias fotos distribuíam-se por todas as estantes do vasto quarto. Fotos dos dois, fotos de felicidade. Olhou diretamente para a escrivaninha de trabalho dela. Aquela era uma visão estranha, estava completamente arrumada e sem nenhuma mancha. A maleta com todas as tintas e lápis da mãe estavam lá esperando para serem pegos. E foram. Agarrou também um porta-retrato com uma foto dos dois e notou algo estranho. Tinha uma estante com uma gaveta no canto e estava sempre trancada. A chave estava na tranca naquele dia.
            A curiosidade tomou-o de uma maneira interessante. A mãe sempre pedira para que ele não mexesse naquela gaveta, e sua fidelidade sempre fora incorruptível até aquele dia. Aproximou-se com cuidado, girou a chave ouvindo o ruído com prazer e deslizou calmamente a pequena gaveta. Os grunhidos da moça que o acompanhava começavam a se tornar incômodos e resolveu apressar-se. Só tinha um livro de tamanho razoável dentro do compartimento; acabamento antigo e sem título. Era verde musgo e linhas douradas o contornavam por inteiro. Tomou-o para si colocando na mochila que carregava nas costas.

            A casa da tia não era nada do que imaginava. Não era nem casa! Viu de longe um grande monumento que primeiramente pensou ser um dos totens de uma das histórias de sua mãe. “É muito largo para ser um”, pensou em voz alta. Um grande retângulo alto com muitos retangulinhos menores e paralelos por toda a lateral. Ele não imaginava como alguém poderia morar em um lugar assim. Imaginava se havia uma casa no topo desse monumento, e se tivesse como chegaria até lá. Convenhamos, era muito alto.
            Logo descobriu que aquele lugar era oco e chamavam de prédio. Para alguém que morou nos subúrbios e tinha estudado a vida inteira em casa com a mãe, não teve contato com tudo aquilo. Mas lembrou que já tinha ouvido falar daquele tipo de construção, mas imaginava algo um pouco mais bonito. Alguma coisa como as figuras da arquitetura romana que via com a mãe.
            Entraram os dois, Gabriel e a assistente social, numa caixa que se movia de cima a baixo. Era um elevador. Ele se sentia extremamente incomodado com aquele ambiente, era assustador. Chegaram a um corredor extenso cheio de portas, era sujo, cinza. Por todos os lados fixados à parede extintores de incêndio eram vistos – sabia o que era pois a mãe desenhara um uma vez.
            A porta escolhida estava toda manchada, tons de madeira mudavam de dégradé por causa da umidade do lugar. Reluzia na porta o número do apartamento: 137. Dois números do azar em uma só porta, só podia ser brincadeira. O barulho seco das batidas da mulher ecoou por todo o corredor até a tia em si abrir a porta. Muita gente podia dizer muito bem de muita coisa da Tia Anastácia, mas se existia uma coisa que faltava nela era beleza. A criança não entendia como uma pessoa poderia ter um nariz tão grande e ao mesmo tempo olhos tão pequenos. Uma senhora idosa com cara de bruxa, isso sim era ela.
            - Ele está em suas mãos, – disse a assistente social - essa semana volto para dar uma olhada em vocês e para finalizar a papelada da guarda.
            “Semana?! Guarda?!”, sentiu-se completamente consternado. Passaria uma semana naquela casa e ainda por cima depois ficaria para sempre. Definitivamente morar em um totem não estava em um dos seus pouco gananciosos planos. Anastácia guiou-o para onde disse que seria seu quarto. Uma cama, uma cômoda e um baú velho. Em cima da cômoda havia todo o tipo de acessórios cor-de-rosa como escovas para cabelo, elásticos, esmaltes, pó facial. “Quarto de menina”.
            - Tia, de quem é esse quarto?
            - É da sua prima, Gabriel, mas não se preocupe, ela irá dormir no quarto do irmão para que você tenha um pouco mais de privacidade.
            Não me admira que os problemas começaram nesse meio tempo. Gabriel mesmo achou que aquilo não seria uma boa idéia. A idéia de fugir de um lugar que ele mal chegara era muito sedutora em sua cabeça, mas decidiu ver até onde as coisas iriam e como iria viver naquela casa com pessoas que costumava ver uma vez ao ano. Mas ainda assim sentiu como se tomar aquele quarto para si não seria uma boa idéia para si ou para alguém.
            Tia Anastácia deixou-o sozinho no quarto com sua mala para que se instalasse. Pegou os últimos traços de menina daquele quarto e jogou num grande saco de lixo. Sentiu pena da menina a qual acabara de roubar o quarto, ela perderia sua privacidade e seus brinquedos.
            A mala foi aberta por um motivo único, para que ele pegasse o retrato que havia recuperado de casa. Deitou-se na cama com o retrato apertado ao peito, ouviu-se um grande ruído de molas no ato, algumas lágrimas escorreram pelo rosto pálido e magro do garoto e os olhos foram se fechando aos poucos. Sem nenhuma intenção acabou adormecendo naquele quarto estranho e indiferente da rua Vieira Diniz 66, no bairro de São Vicente, na cidade de Santa Cecília e na República de Todos os Santos.


Gabriel Vitor Tortejada

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